quarta-feira, abril 12, 2006

Um Processo de Criação


Bárbara Zampol faz Nina em Leo não pode mudar o mundo (Formação 4)

por Mauro Fernando

Em março de 1993, no número 0 dos Cadernos da ELT, Georgette Fadel e Antônio Rogério Toscano colocam o pingo no i. “A Escola Livre de Teatro de Santo André tem como princípios de trabalho o risco e a liberdade.” Tal profissão de fé está no texto intitulado Impressões Sobre Leo não Pode Mudar o Mundo.
Risco e Liberdade. Um é inerente à outra, esta está implícita nele. O artista na corda bamba, tirando seu sustento do público boquiaberto – imagem recorrente para quem procura o belo, e não uma possível praticidade, da arte.
A ELT não se pauta pelas pragmáticas regras de um mercado sempre tão voraz. Para elas, escolas são desnecessárias. O processo colaborativo praticado pela ELT se preocupa com o amadurecimento do trabalho artístico, ignorando algum eventual tilintar proveniente da caixa registradora. A sobrevivência artística deve se equilibrar na qualidade da pesquisa – o que inclui a temática e a abordagem a ela –, subvertendo o pensamento hegemônico, neoliberal (e predador) na essência.
Um processo colaborativo se dá, necessariamente, a excessos – de produtividade, não os do rebuscamento – e, conseqüentemente, a descartes. Necessariamente admite a possibilidade do erro como ferramenta no viajar do aprendizado. Aberta a sugestão do risco, o vôo tende a ser mais intenso e prazeroso, condições para o reconhecimento do trabalho. As dificuldades – tropeços, acertos duvidosos – embutidas no difícil, por complexo, processo colaborativo de criação não o valorizam?
Trabalhar idéias coletivamente é respeitar divergências, questionar certezas, propor, fazer autocrítica. Quem possui no histórico conhecido apreço por ditaduras e falsas democracias é a CIA. Ter de abandonar convicções já cristalizadas pode ser doloroso num primeiro momento, mas recompensador num segundo instante. Se o processo estoura o prazo inicialmente definido, que se reveja o prazo – cada projeto tem seu tempo de maturação.
É o que aconteceu em Odisséia. O Ulisses épico grego transformou-se em contemporâneo, num guerreiro urbano em cacos à procura de razões, de si mesmo. O retorno a Ítaca transformou-se numa peregrinação por um labirinto interno, por um inferno íntimo. A interação entre núcleos (formação, dramaturgia, cenografia) no projeto coordenado por Francisco Medeiros (direção), Gustavo Kurlat (música), Lucienne Guedes (interpretação) e Luís Alberto de Abreu (dramaturgia) configurou uma montagem densa.
Não se trata, naturalmente, de fazer a defesa da criação sob a balbúrdia, do tatear sem se saber onde se quer chegar, da experimentação pela experimentação, desconectada de responsabilidades maiores. São precisos princípios básicos, como o respeito à criação individual em sintonia com a estrutura estabelecida – flexibilidade e fluxo contínuo de informações, além da horizontalidade nas relações. Não ao intervencionismo abrupto. Discussões enriquecedoras, não batalhas fratricidas, a moldar uma montagem.
Equilibrar todos os elementos desse processo – incluindo contradições previsíveis, mas não inconciliáveis – é trabalho árduo, maluquice para quem acredita que arte é resultado. Ao se contrapor ao simplismo de resultados, o processo colaborativo da ELT agrega ainda mais valor.
Seria mais simples montar uma adaptação de A Metamorfose, de Franz Kafka, Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, Romeu e Julieta, de William Shakespeare, e Um Homem É um Homem, de Bertolt Brecht, em quatro semestres. Ao final, meia dúzia de apresentações de cada exercício.
Mas essa não é a proposta pedagógica da ELT, uma escola valente apesar dos problemas, como uma certa incompreensão da proposta marcada por risco e liberdade, que isso traz.
Outro aspecto a ser colocado no tabuleiro – o teatro não é um jogo? – é o desenvolvimento dos “artistas-aprendizes”, como Georgette Fadel e Antônio Rogério Toscano se referem a eles. De Leo não Pode Mudar o Mundo a Osvaldo Raspado no Asfalto, montagens da Formação 4, percebeu-se nitidamente a evolução, com o elenco bem mais desenvolto em cena.
Em Osvaldo Raspado no Asfalto parece ter havido uma potencialização do risco e da liberdade, com a pesquisa indo diretamente a moradores de rua e conhecendo suas reais motivações. Deu-se um espetáculo (direção de Antônio Rogério Toscano, Claudia Schapira, Georgette Fadel, Gustavo Kurlat e Juliana Monteiro) contundente e orgânico.
Crime e castigo (coordenação de Antônio Araújo, Lucienne Guedes e Luís Alberto de Abreu) integrou os núcleos de direção, formação e dramaturgia sob a inspiração da obra de Fiódor Dostoievski. Revelou-se em tom certeiro em que medida a miséria da São Petersburgo do século XIX encontra equivalente nas nossas periferias de hoje.
Duas montagens, em especial, nas quais se vislumbra o espírito de colaboração mútua e conciliação das diferenças como possibilidade inequívoca e efetiva de fazer teatro. Não por acaso, Osvaldo Raspado no Asfalto e Crime e Castigo encontraram caminho próprio, o da aventura por tablados desconhecidos.
Enfim, dosar o arcabouço teórico na prática é a lição. Se é por intermédio do processo colaborativo de criação defendido pela ELT que se constrói o artista – e ser – pensante, longa vida ao risco e à liberdade.

Mauro Fernando é jornalista e escreve periodicamente no blog Rotunda

Um comentário:

La Masturbación disse...

Olá pessoal,
Eu sou Fernando e eu queria comunicar a vocês que coloquei a peça da ELT na Agenda cultural da Revista Caros Amigos. Eu tive que improvisar uma sinopse da peça, mas acredito q tenha sido fiel à proposta de vocês!

Espero que tenha ajudado a divulgar os espetáculos maravilhosos que vocês fazem!

Abraços